FRANCISCO CARRIÓN – elindependiente.com.- A história não se desvanece, por muito que tentemos esquecê-la. Selos, fotografias a preto e branco e até livros escolares e antigos postais turísticos preservam o legado do Sahara Espanhol, outrora a 51ª província espanhola. Um testemunho que também preserva o direito internacional num momento marcado pela mudança de posição do governo espanhol sobre o conflito do Sahara Ocidental, a antiga colónia espanhola ilegalmente ocupada por Marrocos, por cuja responsabilidade Moncloa e o Ministério dos Negócios Estrangeiros tentam desvincular-se.
Desde a sua chegada ao cargo, mesmo antes da mudança de poder de Copérnico que tem agora um ano, o actual Ministro dos Negócios Estrangeiros José Manuel Albares tem utilizado o mesmo argumento até à exaustão. “Nem na lista de territórios não autónomos da ONU nem em qualquer resolução do Conselho de Segurança está a Espanha, uma vez que deixou de o estar em 1975”, declarou Albares em Outubro de 2021 no Congresso dos Deputados, quando a aproximação com Rabat começou a tomar forma em troca do apoio a um plano de autonomia para o último território até à descolonização no continente africano.
Uma tentativa de fugir a uma responsabilidade histórica, na sequência da retirada das últimas tropas espanholas em 1976, que se tornou o principal argumento apresentado por Albares e pelo seu gabinete e que os estudiosos do direito internacional contestam sem hesitação. Desde 1965, e de acordo com a Resolução 2072 (XX) da Assembleia Geral da ONU, a Espanha tem sido a potência administrante, argumentam eles.
Direito interno
“Nesta matéria, existem duas perspectivas, a interna e a internacional. Do ponto de vista interno, em 2014 o Tribunal Nacional declarou expressamente que a Espanha continua a ser o poder administrador e que, como tal, as obrigações do poder administrador permanecem em vigor, que consistem em promover o desenvolvimento e proteger a população”, disse Juan Soroeta, professor de Direito Internacional Público na Universidade do País Basco, ao El Independiente. As suas responsabilidades incluem “a obrigação legal e política de tomar todas as medidas necessárias para garantir a autodeterminação efectiva do povo saharaui”.
Paradoxalmente, essa resolução que reconhece o Sahara Ocidental como um território ainda sob soberania espanhola foi proferida por uma sessão plenária de 15 juízes presidida pelo actual Ministro do Interior Fernando Grande-Marlaska, que, apesar da reprovação parlamentar de Fevereiro passado pela sua “mentira” na gestão da tragédia de Melilla de Junho de 2022, que custou a vida a cerca de vinte imigrantes, continua a defender a acção policial na cerca, incluindo a da gendarmeria marroquina.
Direito internacional
A responsabilidade da Espanha para com os saharauis, sublinha Soroeta, está também consagrada na própria Constituição. O artigo 10º da Constituição estabelece: “As normas relativas aos direitos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Constituição serão interpretadas em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e os tratados e acordos internacionais sobre os mesmos temas ratificados pela Espanha”.
E esta blindagem refere-se às resoluções da Assembleia Geral da ONU e à lista de territórios não autónomos publicada anualmente. Na sua última revisão, datada de Maio do ano passado, o Sahara Ocidental aparece com a entrada: “A 26 de Fevereiro de 1976, a Espanha informou o Secretário-Geral que, a partir dessa data, tinha cessado a sua presença no Território do Sahara e considerou necessário registar que a Espanha se considerava doravante isenta de qualquer responsabilidade internacional de qualquer tipo relacionada com a administração do Território, tendo em vista a cessação da sua participação na administração temporária estabelecida para o Território. Em 1990, a Assembleia Geral reafirmou que a questão do Sahara Ocidental era uma questão de descolonização que faltava ser completada pelo povo do Sahara Ocidental”.
E é esta nota de rodapé que Albares utiliza para renunciar publicamente a qualquer ligação com o Sahara Ocidental e o seu dramático destino. “Na realidade, esta nota de rodapé significa apenas que o secretário-geral toma nota do que a Espanha diz, mas não avalia se esta declaração tem efeitos jurídicos ou se está em conformidade com o direito internacional”, salienta Soroeta. Em 1976, Marrocos e a Mauritânia dividiram o território, e este documento, do qual a Mauritânia mais tarde se retirou, está também incluído no registo de tratados da ONU, apesar de ser ilegal e nulo.
O académico acrescenta: “A Assembleia Geral da ONU aprova todos os anos uma resolução recordando que os poderes administrativos continuam a manter as suas obrigações até que a própria Assembleia Geral diga o contrário. Foi a Assembleia que deu o poder à Espanha e a outros Estados coloniais e é a única que pode pôr fim a esta situação. A Assembleia Geral nunca disse que a Espanha deixou de ser uma potência no Sahara Ocidental”. Uma coisa é a Espanha não querer ter nada a ver com o território, e é óbvio que um Estado pode renunciar aos seus direitos, mas não às suas obrigações.
Terra, mar e ar
E estas obrigações continuam em vigor, em terra, no mar e no ar. Marrocos controla militarmente 80% do território, que cobre 266.000 quilómetros quadrados, pouco mais de metade do total da Espanha. Os restantes 20% estão nas mãos da República Árabe Saharaui Democrática, controlada pela Frente Polisario, uma organização internacionalmente reconhecida que representa o povo do Sahara Ocidental.
O muro de 2.720 quilómetros separa as duas zonas, agora cenário de uma guerra de baixa intensidade que recomeçou em Novembro de 2020. O espaço marítimo é 100% controlado por Marrocos, em violação do direito internacional. Rabat negociou acordos de pesca com a União Europeia, que foram derrubados pelos tribunais da UE.
96 por cento das capturas contempladas neste acordo, cuja anulação está pendente de ratificação, têm lugar nas águas do Sahara Ocidental. A causa do revés marroquino reside precisamente na falta de consulta da população saharaui sobre o acordo de pesca: “respeito pelo seu estatuto distinto e separado e, por outro lado, a obrigação de assegurar o consentimento do seu povo em caso de aplicação do acordo de associação nesse território”, afirma o tribunal europeu.
“O Tribunal Geral aceita o argumento da Frente Polisario de que a exigência relativa ao consentimento do povo do Sahara Ocidental, enquanto terceira parte dos acordos em questão, não foi respeitada na acepção do princípio do efeito relativo dos Tratados”, afirma o acórdão anunciado em Setembro de 2021.
O ESPAÇO AÉREO DO SAHARA, CONTROLO ESPANHOL
O mapa da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO) não deixa margem para dúvidas. Segundo os Serviços GIS da ICAO, os céus sobre o território ilegalmente ocupado por Marrocos são controlados a partir do Abeto das Ilhas Canárias. No jargão aeronáutico, Fir é uma região de informação de voo onde é prestado um serviço de informação e alerta de voo (ALRS). A Organização da Aviação Civil Internacional delega o controlo operacional de um determinado FIR a um país, neste caso, o que cobre as Ilhas Canárias e o Sahara Ocidental recai sobre a Espanha.
Um exercício de força para o qual o espaço aéreo escapa. Após 47 anos de ocupação do território, os céus do Sahara Ocidental são ainda controlados a partir das Ilhas Canárias, tal como estabelecido pelo mapa da Organização da Aviação Civil Internacional, uma agência da ONU que supervisiona a aviação civil internacional.
Apesar das tentativas de Rabat para mudar esta equação, o espaço aéreo do seu devaneio expansionista está fora do seu alcance. São os controladores de tráfego aéreo canários que continuam a monitorizar e a gerir os voos na área. “A seriedade da posição espanhola é que hoje está sentado no cais ao lado do ocupante, defendendo a exploração ilegal dos recursos naturais saharauis”, conclui Soroeta.