O governo português e a última colónia africana

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José Soeiro – expresso.pt.- O Sahara Ocidental é a última colónia africana, ocupada por Marrocos desde 1975. Os saharauís lutam pela autodeterminação há décadas. Guterres, que lutou por Timor, não se esqueceu da importância da persistência e da coerência dos valores nestas matérias. O governo português, pelos vistos, abdicou deles em nome de um campeonato

Os saharauís lutam pela independência há décadas e a ONU tem inúmeras resoluções em que afirma o direito à autodeterminação, além de uma missão no terreno, desde 1991, para um referendo no Sahara Ocidental. Apesar da flagrante ilegitimidade da atual situação à luz do direito internacional, Marrocos continua a rejeitar qualquer possibilidade de decisão democrática que não seja a integração do território, com mais ou menos matizes de autonomia, na soberania do país ocupante. Dois factos recentes agravaram este intolerável cenário.

Primeiro, a mudança de posição do governo espanhol – e também do português – sobre os direitos dos saharauís a decidirem sobre o seu território. A potência ocupante inventou uma “Iniciativa Marroquina para a negociação de um estatuto de autonomia para a região do Sahara”, na qual considera diversas modalidades de integração em Marrocos, mas reitera a negação frontal da autodeterminação nos termos das resoluções da ONU. Que o Governo espanhol tenha cedido a tal proposta, saudando-a, é grave e provocou aliás fissuras significativas no executivo daquele país.

Tanto ou mais mais grave é o governo português ter também manifestado apoio ao plano marroquino, considerando-o uma “proposta realista, séria e credível”. Tal posição está em flagrante contradição com o património histórico e diplomático de Portugal num outro caso cujo paralelismo é cristalino: Timor. Tal como a Indonésia ocupou o território depois da retirada de Portugal, assim fez Marrocos com o Sahara Ocidental, depois de o estado espanhol ter abdicado do estatuto de “potência administrante”.

Em polémica recente num outro jornal, o representante de Marrocos em Portugal bem se esforçou por tentar afastar as óbvias semelhanças dos dois casos. Sem sucesso. Portugal, que se bateu por um processo referendário em que a autodeterminação de Timor era uma das hipóteses em cima da mesa, não pode agora legitimar, de forma totalmente incoerente, uma proposta de referendo no Sahara em que as duas únicas hipóteses são ficar sob ocupação ou ficar sob ocupação, ao arrepio do direito internacional.

O segundo facto grave é que Portugal seja parte de uma candidatura ao Campeonato do Mundo em 2030 que envolve Espanha e Marrocos e na qual se prevê a realização de jogos em território ocupado, num grande estádio que está a ser construído por Marrocos em Dakhla, cidade do Sahara Ocidental. O uso de territórios ocupados para um evento desportivo viola várias normas do direito internacional e torna o nosso país cúmplice daquela operação colonial.

Em 2021, o Tribunal Geral de Justiça da UE anulou os acordos de pesca da UE com Marrocos por incluir os territórios ocupados do Sahara sem consultar os seus legítimos representantes. Em 2022, o Conselho de Segurança da ONU exortou Marrocos e os representantes saharauís a retomarem “as negociações sob os auspícios do secretário-geral”, com vista a “uma solução política justa, duradoura e mutuamente aceitável que permita a autodeterminação do povo do Sahara Ocidental”. Guterres, que lutou por Timor, não se esqueceu da importância da persistência e da coerência dos valores nestas matérias. O governo português, pelos vistos, abdicou deles em nome de um campeonato.