Juan Soroeta Liceras* – dn.pt .- Em 10 de dezembro de 2020, semanas antes de deixar o cargo de presidente, Donald Trump tornou público o reconhecimento pelos EUA da soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental. Este reconhecimento tinha como condição Marrocos estabelecer relações diplomáticas plenas com Israel. Embora isso não constasse de forma explícita, a contrapartida parecia óbvia: Israel devia seguir os passos dos EUA e reconhecer também a soberania marroquina sobre o território sarauí, o que veio a acontecer a 17 de julho de 2023. O Ministro dos Negócios Estrangeiros israelita afirmou que esta decisão “reforçará as relações entre os dois países e os dois povos e a continuação da cooperação para aprofundar a paz e a estabilidade regionais”, uma “paz” que se baseia na violação maciça e sistemática dos Direitos Humanos daqueles que suportam a ocupação militar do seu território ou que sofrem as consequências dessa ocupação em campos de refugiados ou na diáspora.
Embora isso provoque indignação, já não é surpreendente que Estados como Marrocos ou Israel, que violam diariamente o Direito Internacional, ocupando militarmente grande parte do território palestiniano e saharauí e submetendo a população autóctone a graves violações dos seus direitos fundamentais, tenham dado este passo e, além disso, se congratulem publicamente com ele. Ou talvez seja. A sociedade civil marroquina, que até agora considerava o seu rei como o principal defensor dos direitos do povo palestiniano perante a comunidade internacional, está perplexa com o facto de o seu país não só não apoiar o povo palestiniano na sua luta pela autodeterminação, como, pelo contrário, apoiar aqueles que a violam. Embora a colaboração entre estes Estados remonte, pelo menos, à década de 1980, quando no Sara Ocidental se travava uma guerra de libertação nacional conduzida pela Frente Polisario para expulsar o Estado invasor do seu território, e Marrocos construía com a ajuda dos EUA, França e Israel, o muro de quase 2800 quilómetros que divide o território saharauí em dois, a censura férrea imposta durante décadas em todo o país manteve esse mito vivo até aos dias de hoje.”
O Direito Internacional estabelece a obrigação de todos os Estados não reconhecerem uma situação resultante de uma violação grave de uma norma imperativa como aquela que deriva da imposição a um povo submetido a dominação colonial de um regime de ocupação por outro Estado, bem como a obrigação de todos os Estados não contribuírem para a sua consolidação.
A verdade é que desde a sua chegada à presidência dos EUA, longe de implementar e consolidar o reconhecimento da soberania de Marrocos sobre o território, Joe Biden deu passos significativos na direção oposta, naquela que é hoje conhecida como a “Doutrina Biden”: os Estados Unidos não vão retirar esse reconhecimento (não é por acaso que por detrás dele está o poderoso lobby judeu norte-americano), mas também não vai agir em conformidade. Parece claro que, ao contrário, Israel o fará, dada a sua total falta de escrúpulos em violar o Direito Internacional.
O Direito Internacional estabelece a obrigação de todos os Estados não reconhecerem uma situação resultante de uma violação grave de uma norma imperativa como aquela que deriva da imposição a um povo submetido a dominação colonial de um regime de ocupação por outro Estado, bem como a obrigação de todos os Estados não contribuírem para a sua consolidação. Por conseguinte, reconhecer a soberania de um Estado sobre um território que ocupa militarmente, em violação do artigo 2.4 da Carta das Nações Unidas, constitui uma violação grave do Direito Internacional. É indiferente que se reconheça a soberania marroquina sobre os territórios sarauís ocupados, ou a soberania israelita sobre os territórios palestinianos ocupados, ou a soberania russa sobre os territórios ucranianos ocupados. Todos são territórios ocupados, em grave violação do Direito Internacional. O reconhecimento implica a responsabilidade internacional daqueles que o fazem.
Vale a pena recordar que o Tribunal Internacional de Justiça, no seu acórdão de 2004 sobre a legalidade da construção do muro israelita nos territórios palestinianos ocupados, fez várias afirmações aplicáveis mutatis mutandis à situação que estamos a analisar: (1) todos os Estados têm a obrigação de não reconhecer a situação ilegal resultante da construção do muro e de não prestar auxílio ou assistência à manutenção da situação criada por essa construção; e (2) todos os Estados Parte da IV Convenção de Genebra relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra, de 12 de agosto de 1949 têm, além disso, a obrigação de assegurar que Israel respeita o Direito Humanitário Internacional consagrado na referida Convenção.
De facto, tanto o reconhecimento americano como o israelita foram efetuados em violação de, pelo menos, duas regras de direito imperativo, que obrigam todos os Estados, sem exceção: o direito à autodeterminação dos povos e o direito humanitário internacional que, entre outras coisas, proíbe a transferência de população do Estado ocupante para o território ocupado. A transferência maciça de colonos marroquinos para o território sarauí, à semelhança do que é praticado por Israel na Palestina, continua a alterar gravemente a composição demográfica dos dois territórios ocupados. Apesar disso, do ponto de vista jurídico, nada muda; nem a passagem do tempo, nem a modificação artificial da composição da população de ambos os territórios tornam legal a ocupação militar que é, e continuará a ser, uma grave violação do Direito Internacional. Como salientou o Tribunal Geral da União Europeia em dois acórdãos de 21 de setembro de 2021, a população de colonos marroquinos não faz parte do povo destinatário do direito à autodeterminação, ou seja, o povo saharauí.
O Tribunal afirmou que só a Frente Polisario pode dar o consentimento do povo saharauí e que a União Europeia tem a obrigação de não reconhecer a soberania de Marrocos sobre o Sahara Ocidental. Felizmente, no Estado de Direito teórico que é a União Europeia, tanto as instituições como os estados-membros são obrigados a respeitar o Direito Internacional, porque as decisões dos seus tribunais são vinculativas. Mas numa sociedade descentralizada como a internacional, os Estados que, como Marrocos, Israel ou a Rússia, violam sem complexos o ordenamento jurídico internacional, não são obrigados a aceitar a jurisdição de tribunais internacionais que possam colocar limites às suas aspirações expansionistas, pelo que gozam de uma espécie de carta-branca para continuar a fazê-lo.
Mas quais são as consequências jurídicas deste reconhecimento? Indo mais longe, perguntamo-nos quais seriam as consequências jurídicas do reconhecimento por Marrocos da soberania israelita sobre a Palestina, o que é pouco provável que aconteça devido à reação que, sem dúvida, geraria na sociedade civil marroquina. A realidade é que não há nenhuma. Aqueles que habitualmente violam o Direito Internacional continuarão a fazê-lo, como têm feito até agora. Mas nem Trump, nem Netanyahu, nem Mohammed VI têm a capacidade de tornar legal o que não o é. Na mesma linha, a política marroquina de promover a abertura de consulados de terceiros Estados no Sahara Ocidental, numa tentativa de consolidar a aceitação por parte da comunidade internacional do fait accompli da ocupação (o que Trump anunciou que faria, mas que Biden evitou fazer), impulsionada através de pressões e coações contra Estados (imigração, Ceuta e Melilla, cooperação contra o terrorismo internacional, tráfico de droga…) ou contra os seus representantes, ou através da corrupção destes últimos (Marrocosgate) não terá quaisquer consequências para além da disputa entre diplomatas desses países por um posto onde possam gozar umas férias tranquilas, pois não terão de exercer as funções que são habituais nos consulados… devido à ausência dos seus nacionais no território saharauí.
* Professor de Direito Internacional Público Universidade do País Basco / Esukal Herriko Unibertsitatea