expresso.pt.- Em novembro de 2020, a Frente Polisário decretou o fim do cessar-fogo que existia com Marrocos há cerca de trinta anos e voltou a pegar em armas. O Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto está a monitorizar o conflito e desde então registou milhares de ataques. A ONU entende que as hostilidades entre as partes “enfraquece ainda mais a estabilidade da região”
Não muito longe de Portugal, reacendeu-se há quase três anos um conflito que as Nações Unidas (ONU) temem que possa escalar. Em causa está o Sara Ocidental, uma antiga colónia espanhola em África que espera há mais de três décadas por um referendo de autodeterminação. A ONU constituiu a MINURSO, uma missão para a realização de um referendo no Sara Ocidental, em 1991, mas este ainda não se concretizou. O território administrado por Espanha até 1976 é disputado por Marrocos e a Frente Polisário, o movimento de independência reconhecido pela comunidade internacional como legítimo representante do povo sarauí.
“Incursões diárias na faixa tampão adjacente à ‘berm’ e hostilidades entre as partes nesta área violam o seu estatuto como zona desmilitarizada e enfraquecem ainda mais a estabilidade da região, com um risco real de escalada enquanto as hostilidades persistem. Ataques aéreos e disparos ao longo da ‘berm’ continuam a contribuir para um aumento das tensões”, pode ler-se no documento, no qual se apela ao restabelecimento de um cessar-fogo.
De acordo com uma descrição no jornal ‘The Guardian’, o muro no Sara Ocidental tinha há cinco anos 2700 quilómetros, é feito de areia e patrulhado por mais de cem mil soldados marroquinos. Observa-se ainda que foi desenhado com o objetivo de manter os sarauís, que procuram a independência na zona este do deserto, afastados dos recursos naturais da região.
Também Isabel Lourenço observa que o muro “foi pensado de forma a que os terrenos férteis, tal como a água e o acesso aos recursos naturais (minerais, pesca, petróleo, ouro, etc.) estejam do lado ocupado”. A investigadora do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP) indica que atualmente a extensão do muro é de 3000 quilómetros.
O centro criou um “Arquivo da Guerra do Sara Ocidental” online, onde compila informação sobre as operações em curso. No entanto, utiliza exclusivamente dados dos comunicados de guerra da autoproclamada República Árabe Sarauí Democrática. “Até agora, o Governo marroquino não divulgou informações militares sobre o conflito. Os mapas irão incluí-lo assim que estiver disponível publicamente”, ressalva a página eletrónica.
Numa conferência que decorreu esta semana na Universidade do Porto, o investigador Jorge Teixeira, do CEAUP, apresentou dados sobre o recomeço da guerra. Durante os primeiros dois anos registou um total de 3334 ataques em três zonas: Oued Daraa, Saguia el-Hamara e Rio de Oro. Teixeira entende que os ataques sarauís não pretendem ir além do muro. “Não pretendem ultrapassar para o outro lado porque não querem estar a destruir o Sara, querem apenar uma forma de derrubar a barreira e chegar à população que está do outro lado”, disse ao Expresso à margem do evento. O investigador descreveu que “da parte de dentro da muralha há bases militares equipadas com drones, tanques, unidade de intervenção rápidas, aviões, helicópteros de ataque e, da parte de fora, existem minas”.
O investigador defende que “há ataques de drones marroquinos” contra os sarauís. Em 2021, a ‘AlJazeera’ noticiou que a presidência argelina acusou Marrocos de lançar um ataque que matou três cidadãos da Argélia numa zona fronteiriça entre a Mauritânia e o território disputado do Sara Ocidental. Já ‘The New Humanitarian’ escreveu este ano que ataques de drone por parte das forças marroquinas no Sara Ocidental levaram mais pessoas a fugir da zona do deserto para campos de refugiados na Argélia ou cidades na fronteira com a Mauritânia.
A ONU indica que a maioria dos disparos através do muro reportada à MINURSO se concentra na zona norte, ressalvando que é frequentemente incapaz de confirmar de forma independente o número e localização dos incidentes. E o relatório remete ainda para trocas de acusações das duas partes envolvidas no conflito, por exemplo, com a Polisário a acusar Marrocos de usar “todo o tipo de armamento” para matar civis enquanto Marrocos acusa a Polisário de recorrer a um “novo modo de operação” com recurso a soldados disfarçados de civis para “enganar” as forças marroquinas e “manchar a sua imagem em caso de baixas”.
ENTRE O “CONFRONTO MODERADO” E O RISCO DE APROVEITAMENTO
Rui Novais, docente na Universidade Católica Portuguesa, que também participou na conferência “50 anos de descolonização: o processo do Sara Ocidental”, descreveu que sem uma solução política “há a possibilidade de um solo fértil” para que grupos extremistas na região explorem a situação.
“Tendencialmente há uma cultura de paz, de confronto moderado, até pela deferência de poderes existentes, justamente pela consciência de que alguma ação extremada como a que aconteceu na Palestina poderá ter a mesma reação não proporcional de força. Acho que é a conjugação dos dois que previne que o conflito escale, mas [isso] não impede que possa ser aproveitado por outro organismo ou instituição”, observou.
Questionado sobre a possibilidade de crescimento de extremismo junto dos jovens na região, o reitor da Universidade de Tifariti remeteu para a oposição da instituição à violência. “O povo sarauí, como todos os povos que foram colonizados, luta para obter a sua independência. Na Universidade de Tifariti estamos a trabalhar para a formação de uma geração que rejeita completamente a violência e o terrorismo. O que estamos a fazer é simplesmente lutar para conseguir a nossa pátria”, declarou ao Expresso Jatari Andal-la.
O secretário-geral da ONU mantém esperança numa resolução do conflito. “Continuo a acreditar que é possível encontrar uma solução política mutuamente aceitável, justa e duradoura que permita a autodeterminação do povo do Sara Ocidental de acordo com as resoluções do Conselho de Segurança”, escreveu no relatório. No entanto, esta crença depende de uma condição: boa-fé das partes envolvidas, vontade política e apoio contínuo da comunidade internacional.